quinta-feira, 16 de março de 2023

O Farol.

Houve um tempo, em que não me importava, as coisas são como são á que aceita-las. A minha função é muito nobre, salvar vidas da tempestade, do escuro da noite. Isso bastava-me, de ano a ano, lá vinham alguns humanos celebrar-me, fazer discursos bonitos, por mais uma placa, mas a missão nobre continua a mesma. Até que num ano tudo mudou, começaram a raspar a bicar a limpar as teias de aranha e a espantar as suas proprietárias mais as lagartixas, e até um ratito atrevido que fez de mim sua casa. O Cheiro a tinta sufocou-me durante dias, a verniz, mobílias foram instaladas, as gaivotas abandonaram-me por causa do fedor e do barulho. Todo o santo dia homens a bater a arrastar, a falar, alto a arrotar, e não só… Um horror, o meu silêncio foi roubado, as conversas eram grotescas como eles, mulheres, quem as tinha maiores, a mais atrevida. Depois de almoço ainda era pior, mas o barulho diminuía, o vinho tornava-os mais lentos. A seu favor, posso dizer que no final aquelas mãos ásperas fizeram milagres em mim. Como em tudo na vida á que dar valor às capacidades de cada um, e focar no positivo… Depois dos ogres acabarem os trabalhos, sentia-me o farol reluzente e importante de outrora, quando outras mãos ásperas e gretadas, me fizeram nascer. Depois instalaram-se os outros, de farda bonita engomada e cheirosa; Os faroleiros, assim se chamavam, para além de Zé ou Manel, para os distinguir melhor. As gaivotas voltaram, mas eu mandava-as cagar longe, não queria ficar sujo, e elas reclamavam aborrecidas. Mas o milagre deu-se quando apareceu um faroleiro ruivo de olhos verdes, sardento como uma raia. Chegou, entrou e berrou: -olá velho farol, sou o Ernesto e venho cuidar de ti e de mim. Subiu pelo elevador, e contemplou espantado, o mar espelho, ali mais verde, um pouco de azul, uma imensidão prata que era a minha companhia desde sempre. As gaivotas cuscas tentaram aproximar-se, mas o faroleiro enxotou-as e mandou-as ir cagar para outro lado. Pela primeira vez em tantos anos saiu um som dentro de mim que eu desconhecia, até me fez tremer um pouco. O Ernesto faroleiro coçou a cabeça.- Até parece que deste uma valente gargalhada, querido farol. Querido farol disse ele, querido, eu já ouvira aquela palavra antes, da boca das peixeiras que iam para debaixo de mim, num sítio muito escondido que serve para arranjar coisas lá em baixo. Mas, querido era o que algumas sussurravam aos homens, colados a elas com as calças para baixo e elas com as saias para cima… Mas gostei, querido, desde que ele não baixa-se as calças tudo bem. Quando finalmente se instalou no cadeirão castanho, disse que se ia apresentar como deve ser e começou por dizer que tinha saído da barriga da mãe numa madrugada fria de fevereiro. Até hoje penso, como terá ele entrado para lá? A mãe comeu-o? Ou será parecido como os ovos das gaivotas? Enfim, com ele conheci melhor a espécie humana. No verão tinha muito que fazer, andava de um lado para o outro com crias, que depois vim a compreender que para os humanos eram crianças e com adultos chamados professores. Contava a minha estória vezes sem conta às vezes floreava um pouco. Mas deu-se outro milagre, quando no outono, trouxe um estranho retângulo parecido com os que tinha na sua mesa de trabalho. Abriu o objeto, mas em vez de pegar na caneta, começou a falar de um pescador do mar de uma grande baleia… Fiquei fascinado, não permiti que nenhuma tabua estalasse para acompanhar tudo. De repente, bateu as folhas calou-se e disse:-Tenho que esticar as pernas, vou lá acima fazer uma vistoria. Foi direito ao elevador. Mas eu furioso, por ter interrompido a saga do pescador de baleias puxei o elevador para Cima, não queria esticar as pernas? Pois que subisse os 288 degraus… Ernesto assustou-se, coçou a barbicha. -Queres ver que o farol é assombrado? Perguntou:-Se for um fantasma que abra as portas do elevador. Nada aconteceu. – Se fores tu farol, abre as portas do elevador que depois eu continuo a ler o livro. Assim fiz, desci o elevador e abria as portas. Mas em vez de entrar pediu outra vez agora fecha, agora sobe, consegues fechar a porta da entrada? Esteve naquilo um ror de tempo, uma canseira, mas depois abriu um grande sorriso, encostou a boca á minha parede. -Já desconfiava! Disse ele. Do que? Não sei… O inverno chegou e a solidão também, até que mais um milagre aconteceu, numa manhã chuvosa com vento, Ernesto entrou a assobiar, trazendo o sol na cara, e uma caixa de madeira. Lá dentro estava uma estranha máquina com botões. Primeiro começou a rodar e aquilo a chiar, mas aos poucos a chiadeira parou, e elevou-se no ar um outro som. Mas que maravilha, era género cantar dos pássaros, depois com vozes agradáveis que subiram por mim acima. Ernesto todo contente apresentou-me a nova máquina; Radio assim se chamava, e música era o nome do som. Com os livros, o radio a música, a minha existência mudou para sempre. Sem sair dali fiquei a conhecer quase todo o mundo… Tudo devido ao meu amigo Ernesto, às vezes até deixava o radio ligado á noite para eu ouvir. Entre crianças, professores, livros, radio e musica os anos passaram. Ernesto entretanto dissera-me que ia trazer a sua família para me conhecer. A esposa e dois filhos, um de colo, outro de 4 anos. A sua mulher Carmo com a criança ao colo ia- lhe dizendo:-Lá estas tu, com a tua imaginação, é um farol igual aos outros, isso é de leres muitos livros. Ernesto insistia que eu era especial, que gostava de música e de estórias, tal como ele… O pequenote António sorriu e disse: -Eu acredito em ti papa, parece um bom farol. Abriu os seus pequenos braços e colou-se a mim. -Quando eu for grande papa, vou cuidar dele como tu. Vai ser o meu farol. Aquilo despertou em mim um estranho fenómeno, a humidade retida nas paredes juntou-se toda e escorreu pelo meu exterior, como se tivesse chovido dentro de mim… BEIJÒCAS LARÒCAS DA VOSSA SISSI…